sábado, 1 de setembro de 2012

Última lágrima

O cheiro atinge as narinas sem nenhum pudor. Passa pelos corredores e bancadas puidas sem respeitar velhos ou crianças, doentes ou sãos. É uma mistura de produto de limpeza e sabão, com o leve toque agridoce de sangue, que deixa todos no local com expressão funesta.
 
Ao longe o som do choro doido de uma criança, isso, misturado com a tosse seca do velho ao seu lado, só fazia a situação piorar.
 
No fim do corredor uma enfermeira, muito bonita por sinal, cuidadosamente limpava manchas vermelhas de uma maca; apesar das luvas de borracha, teve certeza que aquelas mãos eram muito delicadas, tal qual era a beleza de seus gestos. Ficou encantado e não conseguia desviar os olhos daquela figura etérea, tão deslocada em meio ao caos. Seus movimentos suaves, o vai e vem das mãos, os cabelos sedosos caindo em cascata sobre o rosto, parecia fazer amor, mas os panos em suas mãos, antes alvos, agora gritavam com o vermelho vivo do sangue que o encharcava, não o deixava esquecer de onde realmente estava. E a lembrança não era nada agradável.
 
De repente, um turbilhão de pensamentos invadiu sua mente, sem cerimônia, sem permissão. O que estava fazendo deitado ali? Tentou se levantar, mas sentiu a cabeça girar. A verdade o apanhara de chofre e não estava certo de que queria se lembrar. Um telefonema, uma briga, as chaves da moto, o choro, a perda... os faróis e por fim, a dor. Desespero.
 
Olhou para os lados, procurando pela bela enfermeira, não a via mais. Tentou gritar, a voz não saia. Pela primeira vez teve medo. Não podia terminar daquele jeito, não depois das coisas horríveis que dissera a ela. Como tinha sido injusto.
 
Sentia o peito apertado, como se a mão de uma gigante lhe apertasse o coração, esmagando-o. Olhou em volta novamente, precisava de ajuda. Foi então que ouviu aquela voz, a mesma voz rouca e doce que, nos últimos três anos, sussurrava juras de amor em seu ouvido todos os dias. A mesmo voz que lhe disse a poucas horas que tinha acabado e que não a procurasse mais.
 
Sentiu as lágrimas escorrendo pelos olhos, encharcando o travesseiro. Não chorava pela dor quase insuportável, muito menos pelo medo que sentira instantes antes. O choro sentido era pela certeza de que perdera tudo que lhe era mais caro, a vida não vivida. Não suportou. Uma última lágrima escapou dos olhos já quase fechados. Agora sim, terminara.